Terça-feira, 9 de Fevereiro de 2010

O INSPECTOR BATATINHA

 

 
 
Tenho o prazer de lhes apresentar o inspector Batatinha. De baixa estatura - pequenino e rabino - cabelo farfalhudo desfraldado aos quatro ventos, bigodinho farto e de pontas retorcidas, cara meã cor de açafrão, metido num fato sempre escuro, mas bem passado e óculos de última moda. Gravata às ramagens e de cor berrante, olhinhos vivaços e brincalhões, era conhecido do pequeno público porque, assunto em que se metesse, teria que se sair bem, por certo.
   O caso que se vai contar veio-lhe parar às mãos, não por acinte como de outras causas, mas por um acaso muito ocasional, quando ia, muito descansado da sua vida, a meditar nas possíveis excelências que sempre se podem achar na coisa mais aberrante e escandalosa, para alguns, como nos casos do «Face Oculta» ou «Caso TVI» que se estão a passar na pantalha da nossa triste vida colectiva amordaçada, num caso, configurando um triste atentado contra os dinheiros públicos, no outro  contra a liberdade de expressão. 
Foi o caso que, tendo ele, inspector, por doença da esposa, que estava em delíquio com bicos de papagaia (dizem que piores do que os de papagaio), ido ao supermercado da esquina comprar um par de atacadores para as suas botas-de-elástico, encontrou um amigo que já não via há anos que lhe contou uma pequena história em que se via envolvido, sem saber como dela sair-se airosamente.
   E contou que o senhor do supermercado lhe fizera uma patifaria que punha em dúvida diante das audiências da opinião pública rural e urbana, a sua honestidade e reputação de homem sempre honrado e bom rapaz, de antes escaqueirar que torcer. O inspector, por um processo chamado analepse que em tempos aprendera com o seu professor de português - é preciso recuar - mandou o amigo ir quase até às profundezas do demo buscar as origens da história, mesmo à fonte. Para que os nossos estimados leitores não fiquem analépsicos, poupamos os quilómetros de fita que seria necessário sensibilizar para a clara compreensão do imbróglio. O que deixamos escrito basta para se ter uma ideia clara, concisa, correcta e completa (a regra dos quatro cês) do evento.
   Segue-se que o homem do super tinha investido vários milhares em rolos de papel higiénico - «Eureka!» - exclamou o inspector (ele precisava sempre de um eureka! para despertar as ideias geniais que jaziam na sua cabeça).
   Quando ouviu falar num investimento de tamanha grandeza, o Inspector Batatinha, com os olhos vítreos de circunspectos, disse para o amigo:
   - Oh homem, não ponha mais na carta! Eu já estou a ver tudo o que se vai fazer para vingar a sua afronta. Deixe comigo e vai ver como é!
   Agora, aqui, convém meter que o amigo era proprietário e director de um jornal que, para não desmentir as sondagens, estava, também, numa pré-falência fazendo, assim, coro harmonioso e uníssono com os seus colegas.
   O Inspector Batatinha ligou estes dois factos como quem liga dois cordéis que, à primeira vista, nada têm em comum mas que, como um paradoxo, têm uma relação de causalidade, de concomitância ou de proximidade, entre si.
 - O senhor fique sabendo que eu vou resolver-lhe o problema e libertá-lo desse afogueamento (o inspector gostava de palavras caras para causar espanto nos seus clientes, mas o amigo percebeu afogamento). Mas para isso, o meu amigo terá que fazer tudo, como eu lhe indicar.
   - Senhor inspector, eu sou todo ouvidos, as suas palavras são ordens, prometo pelas cinco chagas.
   - Pois bem! Quantas páginas tem o seu jornal?
   - Costumava sair com 24, mas depois passou a 12, agora está com 10 e, por este andar, fica reduzido a uma folha de couve.
   - Deixe-se de metáforas, o assunto é demasiado sério, meu amigo! Então, vai fazer o seguinte: o jornal vai passar a sair com as 24 páginas primitivas.
   - Mas como é que eu vou arranjar dinheiro para pagar as despesas?
   - O senhor não me interrompa. Guarde as perguntas no bolso e despeje-as só no fim, entendido? Estava eu a dizer que o jornal sai com 24 páginas. Mas, atenção! a tipografia, por indicação sua, só suja metade, isto é, só imprime 12. Não me pergunte para que servem as restantes. O povo, que é quem mais ordena, é que vai decidir por si, ou pelo homem do supermercado. (O leitor preste atenção ao texto e não à cara do amigo).
   Está-se mesmo a ver o que aconteceu depois. O povo, isto é, os leitores, olhando para aquelas folhinhas tão branquinhas e tão lustrosas, deram em acudir à compra do jornal em força, que só vendo. Era os jornais chegarem às bancas e a esgotarem-se, num fósforo. Em algumas bancas até se fazia bicha. É claro que as edições seguintes aumentaram a tiragem para 10 vezes mais e o proprietário todo se embezerrava a ver aquela maravilha de hortaliça, como ele costumava dizer. A publicidade que tinha abandonado o jornal qual ave que abandona o ninho, correu pressurosa, porque sabia que era um bom investimento e o homem já quase não tinha pés a medir. Para sossego, o Inspector fez o favor de abrir um pouco o jogo:
   - Sabe, aquelas páginas em branco correspondem à quota-parte de jornal que nunca ninguém lê, não vem mal ao mundo por isso. O povo saberá dar-lhe o devido destino!
   Então não é que os leitores, constituídos pelos analfabetos profissionais, os profissionais, os alfabetos, os omegabetos, bem como os populares que já muito não punham os olhos nas letras, a não ser nas de banco, coitados, deram todos em comprar o jornal que era maravilha de ver. A explicação era a seguinte: todos os compradores descobriram, qual ovo de Colombo, que era mais barato limpar o sim-senhor ao papel sobrante, branquinho, do jornal, do que limpá-lo a papel higiénico. Além disso, prestava-se um excelente serviço à cultura, e tanto assim, que o governo, para não passar pela vergonha de inculto e fomentador da iliteracia, viu-se obrigado a conceder um farto subsídio de difusão e de papel (porte-pago já tinha). E a verdade é esta: por muito pouco que os leitores lessem o jornal, sempre iam deitando o olho a um título, a um boneco, a um pequeno texto. Alguns houve, até, pasme-se! - que se entretinham com graça a ver a listagem da necrologia - talvez, na sua santa ignorância, a ver se lá vinha o nome deles. De modo que o jornal, segundo um estudo de mercado e segundo um artigo de opinião de um crítico encartado, passou a ter uma dupla função: exercia uma função mediática de 1.º grau, que lhe é própria, e uma função mediática de 2.º grau, merdiática ou higiénica que, desde logo, se repercutiu por todos os interstícios do imaginário colectivo dos compradores.
   - E o homem do super? Esse, coitado, viu os seus prejuízos higiénicos a subir em progressão aritmética e geométrica, ao mesmo tempo e deitava as mãos à cabeça, sem saber explicar o fenómeno. Suspeitava que aí havia o dedo do destino vingativo, mas a sua imaginação ficava por aí.
   Não perguntem ao repórter o que aconteceu a tanto papel higiénico. Pensamos que teria apodrecido nas masmorras subterrâneas do armazém. Era ao tempo em que as pessoas, assoberbadas por uma recessão que se abateu desalmadamente sobre o país, tinham regredido ao período da pedra lascada. Calcule-se qual não teria sido a alegria de toda a gente quando voltou aos tratamentos nalguísticos com papel disfuncional de boa qualidade. Depois o proprietário do jornal chegou a dar-se ao luxo de editar o jornal com um suave e delicioso cheirinho a perfume, sobretudo a partir da altura em que o jornal em referência começou a ser gratuito, a publicidade em força chegava e sobejava para fazer nadar o jornal e o proprietário em mar de rosas. As pessoas, mesmo que quisessem, não podiam virar-se para outro jornal. Os outros tinham já ido todos à falência precipitada...
   O Inspector, cérebro de todo este processo de branqueamento, não cabia na pele de contente, por verificar que a sua criatividade estava no auge da sua força. Lá teria ganho o seu quinhão, por isso.
   Não é o inspector que o diz, mas diz-se à boca pequena, por entre cochichos e beijinhos orelhísticos, que esta foi a primeira vez que o povo anónimo, a maioria silenciosa, o povo não berrão, se vingava dos comerciantes e hipermercadistas interesseiros e exploradores. E nos mentideros da capital falava-se à boca grande nesta nova maneira de vingança, ao ver-se toda a gente a limpar o rabo àqueles que passam a vida a limpar a carteira aos pobres e explorados fregueses.
 
 
 
 
publicado por argon às 09:16
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